Memórias do Boi Serapião

Carlos Pena Fº

26/11/1955

Ilustrações e sobrecapa de Aloisio Magalhães

A Aloisio Magalhães e José Meira

Este campo,

vasto e cinzento,

não tem começo nem fim,

nem de leve desconfia

das coisas que vão em mim.

Deve conhecer, apenas

(porque são pecados nossos)

o pó que cega meus olhos

e a sede que rói meus ossos.

No verão, quando não há

capim na terra

e milho no paiol

solenemente mastigo

areias, pedras e sol.

Às vezes, nas longas tardes

do quieto mês de dezembro

vou a uma serra que sei

e as coisas da infância lembro:

instante azul em meus olhos

vazios de luz e fé

contemplando a festa rude

que a infância dos bichos é …

No lugar onde eu nasci

havia um rio ligeiro

e um campo verde e mais verde

de um janeiro a outro janeiro

havia um homem deitado

na rede azul do terraço

e as filhas dentro do rio

diminuindo o mormaço.

Não tinha as coisas daqui:

homens secos e compridos

e estas mulheres que guardam

o sol na cor dos vestidos

nem estas crianças feitas

de farinha e jerimum

e a grande sede que mora

no abismo de cada um.

Havia este céu de sempre

e, além disto, pouco mais

que as ondas nas superfícies

dos verdes canaviais.

Mas, os homens que moravam

na língua do litoral

falavam se desmanchando

das terras gordas e grossas

daquele canavial

e raras vezes guardavam

suas lembranças mofinas

as fumaças que sujavam

os claros céus que cobriam

as chaminés das usinas.

Às vezes, entre iguarias,

um comentário isolado:

a crônica triste e curta

de um engenho assassinado.

Mas logo à mesa voltavam

que a fome bem pouco espera

e os seus olhos descansavam

em porcelanas da China

e cristais da Baviera.

Naquelas terras da mata

bem poucos amigos fiz,

ou porque não me quiseram

ou então porque eu não quis.

Lembro apenas um boi triste

num lençol de margaridas

que era o encanto do menino

que alegre o tangia para

as colinas coloridas.

Um dia, naquelas terras

foi encontrado um boi morto

e os outros logo disseram

que o seu dono era o homem torto

que em vez de contar as coisas

daqueles canaviais

vivia de mexericos

“entre estas índias de leste

e as Índias Ocidentais”.

.A verde flora da mata

(que é azul por ser da infância)

habita: os meus olhos com

serenidade e constância.

Este campo,

vasto e cinzento,

é onde às vezes me escondo

e envolto nestas lembranças

durmo o meu sono redondo,

que o que há de bom por aqui

na terra do não chover

é que não se espera a morte

pois se está sempre a morrer:

Em cada poço que seca

em cada árvore morta

em cada sol que penetra

na frincha de cada porta

em cada passo avançado

no leito de cada rio

por todo tempo em que fica

despido, seco, vazio.

Quando o sol doer nas coisas

da terra e no céu azul

e os homens forem em busca

dos verdes mares do sul.

só eu ficarei aqui

para morrer por completo,

para dar a carne à terra

e ao sol meu branco esqueleto,

nem ao menos tentarei

voltar ao canavial,

pra depois me dividir

entre a fábrica de couro

e o terrível matadouro municipal.

E pensar que já houve um  tempo

em que estes homens compridos

falavam de nós assim:

o meu boi morreu

que será de mim?

Este campo,

vasto e cinzento,

não tem entrar nem sair

e nem de longe imagina

as coisas que estão por vir,

e enquanto o tempo não vem

nem chega o milho ao paiol

solenemente mastigo

areia, pedras e sol.

1978

UT Libraries 2008

Agropoética: Una antología geórgica