Para a defesa da cultura

24/2/1976

UVª Library 2010

Visão 1975

Vol. 46

PROJETOS

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Eça de Queirós

Eu queria é que o Brasil, desembaraçado do ouro imoral e do seu D. João VI, se instalasse nos seus vastos campos, e aí quietamente deixasse que, dentro da sua larga vida rural e sob a inspiração dela, lhe fossem nascendo, com viçosa e pura originalidade, ideias, sentimentos, costumes, uma literatura, uma arte, uma ética, uma filosofia, toda uma civilização harmônica e própria, só brasileira, só do Brasil, sem nada dever aos livros, às modas, aos hábitos importados da Europa. O que eu queria (e o que constituiria uma força útil no universo) era um Brasil natural, espontâneo, genuíno, um Brasil nacional, brasileiro e não esse Brasil, que eu vi, feito com velhos pedaços da Europa, levados pelo paquete e arrumados à pressa, como panos de feira, entre uma natureza incongênere, que lhe faz ressaltar mais o bolor e as nódoas.

(Carta de Fradique Mendes a Eduardo Prado, escrita de Paris em 1888.)

Tendo como um dos objetivos fundamentais preservar, no processo de desenvolvimento econômico, os valores da formação cultural brasileira, o país poderá ter brevemente, em Brasília, um Centro Nacional de Referência Cultural. A ideia é patrocinada pelo ministro Severo Gomes, cujo Ministério, o da Indústria e Comércio, por meio da Secretaria de Tecnologia Industrial, fornece recursos para os estudos de viabilização do projeto, que deverá estar concluído dentro de um ano. O assunto mobiliza, por enquanto, os ministérios da Indústria e Comércio e da Educação, além da Secretaria de Planejamento da Presidência da República e da Secretaria da Educação do Distrito Federal. Em breve, movimentará também o Itamaraty e o Ministério do Interior. Mas todo o Governo está interessado nele, pois, como ressalta Severo Gomes, sua abrangência é tal que tende a beneficiar todos os campos da atividade no país. O que se pretende não é apenas salvar a “memória nacional”, mas compor uma instituição capaz de exercer uma atuação dinâmica no sentido de impedir que o desenvolvimento econômico acelerado atropele e esmague a identidade nacional e de fazer com que se preservem, nesse processo, os valores da formação cultural do país. A ideia vem sendo examinada, há meses, por uma comissão que funciona na Universidade de Brasília e na qual estão representados os órgãos mais diretamente ligados ao assunto. Ainda não se definiu o programa. Mas, ao longo das discussões semanais, já se chegou a um esboço claro, sobre o qual meditará até o fim do ano um grupo de trabalho que se instalará no próximo mês de março, tendo como coordenador o professor Aloisio Magalhães — o mais renomado designer brasileiro — e como membros ainda não escolhidos um especialista em engenharia de sistemas, outro em documentação e indexação e um terceiro em antropologia cultural.

Isso não significa, no entanto, que se terá de esperar o término do trabalho desse grupo para sentir os primeiros resultados. Já  estão programadas três exposições, cujo preparo “irá enriquecer nossa maneira de ver o projeto”, segundo diz o embaixador Wladimir Murtinho, secretário da Educação do Distrito Federal. Tais exposições serão apresentadas no fim deste ano, em 1976 e 1977. A primeira sobre o índio brasileiro de 1500, a segunda sobre Portugal da época da descoberta e a última sobre a costa da África no século XVII e até meados do século  XIX, que é a terceira fonte da formação racial e cultural do Brasil. O preparo dessas exposições exigirá pesquisas a serem feitas no país e sobretudo no exterior, mesmo no caso dos índios, pois estão lá fora, como afirma Murtinho, “90% da riqueza sobre arte indígena brasileira, levados ao tempo em que nós não colecionávamos”.

Cogita-se ainda, de uma mostra sobre “Santos Dumont designer”, para setembro, e de outra sobre “O tempo de Pedro II”, para dezembro deste ano.

Enquanto formulam o projeto, seus dirigentes querem ir realizando atividades que motivem o país para a ideia. Isso, sem contar com a vantagem, bem mais palpável, de que as pesquisas indispensáveis à organização de exposições,  por exemplo, resultarão num acúmulo de conhecimento, pela produção de material que já será documentado, analisado e relacionado, como acervo da futura instituição. Domina a todos a preocupação de dinamismo. Aloisio Magalhães comenta que seria um

“pensamento extraordinariamente absurdo”

imaginar que se iria fazer um levantamento completo da realidade brasileira, como um todo e de uma só vez. O Centro, uma vez estruturado, deverá dedicar-se a questões prioritárias, acudindo os setores em que o processo de desenvolvimento econômico estiver colocando valores culturais sob ameaça de rápido desaparecimento. E tanto poderá atuar por iniciativa própria, como agir por solicitação de instituições operacionais do Governo ou de organizações privadas. Se uma entidade pede o levantamento do contexto sócio-cultural de uma região onde implantam um projeto ou se um empresário solicita um estudo de formas e cores para estamparia, o Centro deve atribuir prioridade também a esses pedidos.

Severo Gomes disse a D’Alembert Jaccoud, de Visão, que o Ministério da Indústria e Comércio “dispõe de razões de sobra para aplicar nesse projeto, não é o mecenato que o move”. E contou, então, a história de sua participação.

Em 1973, quando era diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo, ele procurou estabelecer um programa para o desenvolvimento de desenho industrial. Partia da ideia do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, que preconizava um levantamento do acervo do desenho industrial brasileiro. Fez contatos com a Secretaria de Tecnologia Industrial do Ministério com a Escola de Desenho Industrial e com o Museu de Arte Moderna do Rio, além de buscar pessoas que pudessem colaborar. Mas havia muita dificuldade e desencontro de opiniões quanto ao que poderia ser feito. As conversas avançavam com lentidão, “amadoristicamente”, e assim Severo Gomes assumiu o Ministério, em 1974, trazendo apenas a preocupação inicial, não um projeto. Em Brasília, ele encontrou o embaixador Murtinho empenhado em formular e propor medidas relacionadas com a implantação de uma infra-estrutura cultural para o Distrito Federal. Embora esta não fosse uma cidade propícia ao desenvolvimento do desenho industrial, nada impediria que dali se fizesse o levantamento sobre o que existe no país quanto à matéria. Murtinho cogitava do assunto, a respeito do qual vinha trocando ideias, nos últimos dez anos, com Aloisio Magalhães. As considerações se desdobraram rapidamente, sobretudo depois que Magalhães foi trazido à conversa. Severo Gomes entusiasmou-se e levou o problema a diversos círculos do Governo. Falou com o chefe do Gabinete Civil da Presidência, ministro Golbery do Couto e Silva, com o secretário de Planejamento, ministro Reis Velloso, com o ministro da Educação, Ney Braga, e verificou que havia um consenso para o estudo de um projeto ambicioso, destinava, nas últimas décadas.

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Em 1974, por iniciativa do Ministério da Indústria e do Comércio e, a cooperação dos Ministérios do Planejamento e da Educação e Cultura, foi iniciado o planejamento de um centro cultural que foi fundado no ano seguinte: o Centro Nacional de Referência Cultural, destinado a criar uma memória nacional e colocá-la a serviço de todos os setores, que nela encontrarão as referências estilísticas da autêntica cultura brasileira.

Por vinculação natural, o Ministério da Educação já estava presente na Comissão instituída pelo governador do Distrito Federal, Elmo Serejo Farias, para cuidar da infra-estrutura cultural de Brasília. Então, o Ministério da Indústria e Comércio e a Secretaria de Planejamento designaram também representantes para aquela comissão, que passaria a dar total precedência ao projeto relativo à memória nacional, até definir suas coordenadas básicas. Neste ponto, ela transferiria o assunto a um grupo de trabalho — o que acontecerá agora, ficando livre para tratar dos projetos específicos da capital da República. Lembrando que a arquitetura de Brasília é a melhor prova de que há um estilo nacional, o ministro Severo Gomes proclama ser imperativa, a esta altura, a vinculação do processo de desenvolvimento econômico às raízes da formação cultural brasileira, sob pena de vir a descaracterizar o país, perdendo a personalidade própria. O ministro observa que no passado não havia diferença entre a produção industrial e a criação artística. A produção de uma rede, de um pilão, de uma cerâmica continha a criação artística. O processo de desenvolvimento econômico separou as duas coisas e empobreceu essa criação. É só atentar para a nossa indústria de bens de consumo: nós não temos objetos próprios, mas cópias de desenhos produzidos no exterior. “Tudo é cópia”, enfatiza, e essa reprodução não só impede que se afirme o estilo nacional, amortecendo a cultura do país, mas agrava as condições de competição dos nossos produtos no exterior. É mais fácil competir quando o país não copia um modelo consagrado, expressão de outra cultura, mas se apresenta com uma qualidade nova, desenho de sua própria cultura, que diferencia o objeto, particularizando-o, e lhe confere um valor intrínseco. Aloisio Magalhães começa por observar que o fenômeno da descaracterização cultural se está tornando cada vez mais grave, impulsionado pelo extraordinário avanço das comunicações, que vai proporcionando uma “absorção não crítica”, pelos povos mais atrasados, do comportamento dos povos mais desenvolvidos.

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… nas últimas décadas. Evidentemente, muito mais vulneráveis se revelam as culturas recentes, ainda em formação.

O Brasil, por uma “coincidência histórica” verificada na sua origem, estaria em condições favoráveis para enfrentar o problema. A coincidência mencionada pelo coordenador do projeto consiste em que os espanhóis, donos de um temperamento agressivo, aportaram na América justamente nas regiões onde se localizavam as civilizações autóctones mais desenvolvidas, enquanto os portugueses, com seu temperamento acentuadamente tolerante, vieram encontrar aqui um espaço praticamente vazio, aberto para a implantação cultural, já que não existia nele uma civilização desenvolvida a ponto de estabelecer o conflito registrado nas outras partes do continente. Ao contrário do que aconteceu na América hispânica, aqui os fatores se conjugariam no sentido da formação de uma cultura homogênea, ou menos contrastada, suscetível de fácil ajustamento. Até a língua teria contribuído. Sendo o português menos universal do que o castelhano, o Brasil ficou relativamente isolado, o que teria forçado a sociedade incipiente a manter uma posição mais crítica, já que precisava conhecer outras línguas para absorver novas informações. Relativamente isolado, o Brasil teria tendido para uma atitude mais reflexiva, o que explicaria a maior lentidão do seu desenvolvimento e, por outro lado, ter-se-ia livrado da implantação de uma sociedade marcadamente européia, como aconteceu na vizinha Argentina. Tudo isso teria amainado os choques na formação nacional. Se é verdade que o Brasil ficou à beira do mar, copiando a Europa na maneira de vestir, em hábitos alimentares, objetos, costumes, arquitetura, etc, o isolamento e a lentidão teriam ajudado a estabelecer o equilíbrio racial e o intercâmbio entre as culturas que aqui conviviam. E teriam impedido que a imitação da Metrópole abafasse o aparecimento de valores autenticamente brasileiros (não europeus, nem índios, nem africanos). Mas

“a exigência do desenvolvimento econômico acelerado, que corresponde à inexorável necessidade de colocar o país numa posição correta dentro do sistema universal, econômico, comercial, político e cultural”,

diz Magalhães, traz séria ameaça à civilização que lentamente se compunha no

“maravilhoso contexto que herdamos, de unidade num espaço físico tão grande, unidade de língua, de temperamento e de tranquilidade ecológica, tranquilidade étnica, etc”.

O desenvolvimento econômico é desejável e inevitável,

continua ele,

mas funciona como um rolo compressor que deixa atrás de si um rastro de destruição de valores culturais e tende a apagar, assim, a personalidade dos povos.

Magalhães se reporta à pergunta que lhe foi feita pelo ministro Severo Gomes, no primeiro encontro: que fazer para que o desenho industrial brasileiro possa desenvolver-se a ponto de criarmos produtos que sejam reconhecidos como brasileiros? Nas discussões, fixou-se a conveniência de um projeto ambicioso, a partir da convicção de que só o conhecimento global da realidade cultural permitirá resolver o problema. O projeto teria de ser abrangente, pois precisaria tratar desde os aspectos socioeconômicos (passagem de práticas artesanais para o processo industrial, adequação de tecnologia industrial sofisticada a uma realidade social ainda não preparada para recebê-la) até os aspectos histórico-sociais. Seria indispensável investigar todos os elementos, hábitos, costumes, comportamentos, a maneira como certos materiais foram ou vem sendo tratados. Um poderoso elemento com que o Centro vai contar: a tecnologia do computador DOS, certas tecnologias desenvolvidas em ciclos sociais determinados, para que todo o acervo composto ao longo da evolução histórica do país seja documentado, tendo-se em vista a necessidade de alcançar, sempre, uma visão de conjunto.

… indispensável conhecer o contexto em que ele atua para identificar os elementos que constituem o seu universo.” A tecnologia do computador oferece inesgotável possibilidade de armazenamento de informações. A dificuldade consistiria em encontrar-se a maneira adequada de processar esse armazenamento mediante um sistema que propicie sua utilização efetiva. Seria necessário um sistema suficientemente flexível para se adaptar aos múltiplos aspectos da realidade investigada e suficientemente ordenado para que todos os elementos ingressem no acervo com uma coerência básica, capaz de permitir a comparação entre eles, a qualquer momento e com facilidade. O Centro Nacional de Referência Cultural iria investigar num processo incessante acumulando material dentro de uma precisa unidade conceitual.

Ficou estabelecida desde logo a preferência pela documentação iconográfica, seja tomando-se o próprio objeto seja sua imagem visual. Aloisio Magalhães acentua que o documento visual não só é mais “neutro” como permite maior número de “leituras” do que a informação discursiva. Recorre a um exemplo: a fotografia de uma árvore é um documento cuja leitura pode interessar na faixa de agricultura, na faixa puramente botânica, ao jardinista, a quem procura determinado tipo de folhagem, flor ou fruto, etc. A informação discursiva, como tem caráter interpretativo, condiciona a interpretação e limita o interesse. Mas o Centro não eliminará a informação discursiva: a fotografia da árvore estará sempre acompanhada de uma ficha, na qual se diz que essa árvore é citada num poema de Carlos Drummond de Andrade, que sua descrição técnica consta de tais documentos, que ela existe em tal região, etc. É incalculável o potencial de contribuição do Centro ao desenvolvimento do país, já que ele pode fornecer elementos para a orientação de um processo evolutivo social, tecnológico, cultural e até mesmo econômico. Magalhães formula um exemplo:

imagine-se que o desenvolvimento exija a construção de 10 mil casas em determinada região. O órgão operacional competente toma todas as providências para a execução do plano mas não indaga que tipo de homem vai morar nessas casas, quais os seus hábitos culturais e sua expectativa de evolução social. Quando a casa é feita sem essas considerações, há a possibilidade de choque cultural, ou seja, de inadequação entre o indivíduo e o objeto que lhe é proposto. Não é possível que todos os órgãos operacionais tenham preocupações dessa ordem. Mas é cabível que exista um instituto capaz de oferecer ao Banco Nacional da Habitação ou a qualquer outra entidade os dados para adequação da obra às suas finalidades. E isso teria um sentido econômico. De um lado, porque cada esforço de pesquisa feita integrada e sistematicamente resulta no crescimento do acervo, ao qual se somam informações novas, que são codificadas e podem ser usadas novamente, entrecruzadas e comparadas com tudo quanto existia sobre o assunto.

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… porque o Centro de Referência, além de considerar o homem, poderia considerar também o problema do material. Será que o tipo de material usualmente aplicado na construção de casas, em certa região, é o que convém? Por aí se ingressaria na questão da economia e da adequação do material às necessidades do uso. E também se ingressaria no esforço para detectar matérias-primas que possam substituir as que o país importa e, ainda, para descobrir o potencial de produtos ou matérias-primas tratados em termos artesanais e que sejam passíveis de transposição para o processo industrial.

A importância da pesquisa de material, de forma e de cores cresceria muito diante do cansaço que se observa no mundo ocidental quanto ao chamado estilo internacional.

“Tudo está ficando parecido: pessoas, objetos, coisas”,

diz Magalhães,

“e isso dá lugar a uma reflexão sobre o potencial de um objeto que quebre esse circuito, impondo-se por sua qualificação de autenticidade.”

É o que ocorreria, sem dúvida, com os objetos escandinavos, do móvel ao cristal e à cerâmica, que obtem enorme sucesso no mercado mundial. Nesses produtos industriais se contém

“uma verdade intrínseca incorporada ao longo do tempo, representada pela vivência e pelo esforço acumulados no trato do material por gerações inteiras de artesãos”.

A propósito, Magalhães recorda que encontrou, numa obra de Claude Lévy-Strauss, alguns padrões geométricos de desenho usados por índios brasileiros e que o autor anotara num estudo sobre mitos.

“Olhando esses desenhos”,

continua,

“verifiquei que estava diante de uma riqueza adormecida, pois são padrões desconhecidos que nunca foram estudados senão sob o ponto de vista do mito. Percebi o potencial dessa forma, se examinada,  por exemplo, do ponto de vista do tecido impresso. Nós temos uma realidade extremamente rica e adormecida. O problema está em ir despertando tudo isso e dar a esse potencial uma realidade nova. É preciso ter um local adequado e modelos pertinentes para o exame sistemático do universo das coisas anteriores — que é a faixa da coisa autêntica —,  para dali extrair subsídios dessa autenticidade, cuja característica acresce novo valor aos objetos.”

As hipóteses de trabalho seriam uma

“coisa abismosa”.

O Centro poderia conduzir investigações em dada região, por exemplo, para traçar o seu perfil sócio-econômico-cultural com o fim de orientar, ali, o processo industrial. Na era da importação de tecnologia em pacote é comum a montagem de indústrias sofisticadas em zonas que exigiriam, para a harmonia do seu desenvolvimento sócio-cultural, técnicas menos evoluídas, tendentes a assegurar mais intensiva ocupação de mão-de-obra ou a utilização da mão-de-obra de modo mais consentâneo com a realidade humana local. Seria possível estabelecer critérios e referências de grande proveito para dosar a passagem de um nível tecnológico para outro mais avançado, a fim de que a transformação não prejudique o desenvolvimento nem gere o acúmulo de tensões sociais.

Mas, se esses aspectos são os que mais interessam a Severo Gomes e Aloisio Magalhães, o que entusiasma o embaixador Wladimir Murtinho é a repercussão do projeto no campo propriamente cultural. O Centro Nacional de Referência Cultural terá um “depósito”, constituído por uma iconoteca, uma biblioteca, uma fonoteca, uma filmoteca e um setor arquivológico, e um “espelho” de tudo isso, que será o Centro de Exposições e Pesquisas da Forma — um museu a que se nega o nome para fugir ao conceito estático aferrado a esse tipo. Com o grupo de trabalho, começa a tarefa mais difícil na elaboração do projeto de instituição. “Museu é algo que conserva aquilo que existe”, explica Murtinho, “e nós queremos que o Centro de Exposições seja um forte elemento de criação de interesse, não só para a ampliação do material de documentação mas para o enriquecimento dinâmico da cultura nacional.” Isso será feito através da organização de exposições temáticas periódicas que se montarão em Brasília e serão levadas às principais cidades do país.” De acordo com a ideia, cada exposição obrigará o Centro a fazer grande número de investigações, para saber onde estão os objetos, colhê-los (ou à sua imagem visual), analisá-los, relacioná-los e, finalmente, escolhê-los. Como destaca o secretário de Educação de Brasília, “o importante não é a exposição, mas sabermos que há 2 mil objetos parecidos, dos quais escolhemos dez para expor, tendo porém os 2 mil fotografados, relacionados e analisados”. Não há a preocupação de aumentar o acervo, mas a documentação. Não se pretende concorrer com qualquer outra instituição, pois o Centro “não abrigará uma peça quando essa peça tiver onde ser abrigada corretamente ou já estiver sendo abrigada corretamente”. Em compensação, sendo uma entidade neutra, que não se preocupa com a multiplicação do seu próprio acervo, o Centro poderá usar os acervos múltiplos das instituições existentes.

Como o objetivo precípuo é obter e acumular sistematicamente informações, o interesse não será formar uma nova pinacoteca, por exemplo, mas documentar fotograficamente toda a obra de um artista como Volpi, antes que ela se disperse por inteiro, de modo a poder, a um dado momento, refazer a exposição de qualquer das fases da obra desse pintor. O importante é a referência nessa organização aberta que tanto se interessará pela arte plumária, por partituras do século XVII, por uma colher de pau ou um objeto de design, quanto por manter um atualizado fichário dos gravadores brasileiros e expressivos exemplos da janela em nossa arquitetura rural.

Eles não têm dúvida quanto ao êxito final do trabalho: se tudo correr bem, já no próximo ano será possível iniciar a construção da sede do Centro Nacional de Referência Cultural em largo terreno situado na Esplanada dos Ministérios, entre a Catedral e a Plataforma Rodoviária de Brasília. De um lado, sua confiança é alimentada pelos recursos com que o Ministério da Indústria e Comércio assegura a conclusão dos estudos e pela colaboração da Universidade de Brasília, que colocou sua infra-estrutura (biblioteca, centro de documentação) a serviço do projeto. De outro lado, porque um grande número de iniciativas surgidas nos últimos anos demonstraria que se firmou, no Governo e fora dele “a consciência da necessidade de proteger-se a memória nacional. Essa consciência, salienta Aloisio Magalhães, não emerge apenas da ação do Governo, que executa um plano de recuperação das cidades históricas, desde o ano passado, e propicia, agora, a elaboração deste novo projeto, empenhando nele o esforço de órgãos dos mais diversos setores da Administração.

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Antes disso, surgiu o chamado Plano Afonso Arinos, de levantamento do acervo arquitetônico do país. Neste momento, Hélio Silva — incansável documentador da história brasileira contemporânea — pensa em organizar a “memória histórica” da nação, enquanto o professor Antônio Houaiss trabalha uma ideia também relacionada com a memória nacional, mas a memória a partir da palavra, com a preocupação de conter a desfiguração do vernáculo. Reforçando essa argumentação, o professor Edson Nery da Fonseca, que também participa dos estudos sobre o Centro Nacional de Referência Cultural, acentua que, no planejamento da Universidade de Brasília, Darcy Ribeiro previra a  a organização do Museu da Cultura Brasileira — instituição de que a UnB abre mão, agora,  para integrar-se no projeto de maior fôlego (a UnB deverá incumbir-se de operar o museu do Centro de Referência).

Aloisio Magalhães acentua que o problema é de tal modo sentido que na Escola Superior de Desenho Industrial, no Rio – onde ele examina teses de formatura -, vêm surgindo trabalhos que menos parecem teses de design do que de antropologia cultural. E cita alguns:

Vi na ESDI um levantamento magnífico sobre a vida das cidades ribeirinhas do São Francisco em face do tráfego no rio: a intercomunicação, a presença de valores culturais, enfim o universo do homem daquela região. Vi outro sobre a evolução da caligrafia, o uso da letra em termos de outdoor, ou seja, a letra em comunicação num contexto social. Outra tese maravilhosa examina a evolução do bairro da Lapa, no Rio, desde a formação da cidade. Usos, costumes, arquitetura, comportamento, comércio.

Então, as preocupações e os esforços convergentes revelariam que o conhecimento da realidade sócio-cultural é uma necessidade objetiva. Mas as pesquisas que se fazem, por pessoas ou instituições, desenvolvem-se isolada e dispersamente, com enorme perda — perda do material coligido e dos próprios estudos, já que se ignora a existência deles; perda por pesquisas ociosas, repetitivas do que está feito; perda por impossibilidade de articulação desses trabalhos, o que impede a visão de conjunto indispensável tanto para alargar os horizontes de quem se dedica a um aspecto da realidade quanto para a segura e adequada formulação de uma política cultural, ou mesmo de saúde pública, ou de habitação popular ou até econômica.

O “achatamento cultural”, que apaga a personalidade dos povos, é tão grave hoje

— segundo afirma Magalhães

que afeta inclusive a solução dos problemas econômicos.

Comenta ele que o Clube de Roma (uma entidade que reúne cientistas preocupados com o destino do universo, para debates anuais) chegou à conclusão de que pouco vale examinar isoladamente problemas como o do crescimento demográfico, o da agricultura (alimentação ou fome) ou o da ecologia sem estudá-los no contexto global da realidade sócio-econômico-cultural. E acentua que há trechos de trabalhos do Clube de Roma que poderiam ser transcritos no projeto que elabora para o Brasil. Por exemplo: “Não se trata, no entanto”, diz o Clube de Roma, “de definir simplesmente um vasto programa econômico, na escala do mundo, mas de estabelecer um modelo de desenvolvimento que respeite a diversidade de regiões no planeta.

Um sistema interdependente em que cada componente trará a sua contribuição econômica, cultural e em recursos naturais. É preciso não só levar em conta a diversidade do mundo, mas tudo fazer para preservá-la”. Wladimir Murtinho pondera que aí se sublinha a grande preocupação do mundo inteiro em preservar a personalidade dos povos e diz que daí se deduz a possibilidade de exportar-se a solução que o Brasil procura estabelecer. Todos os países estão preocupados, raciocina ele, mas ninguém sabe como salvar a memória nacional, como identificar suas características e descobrir as que devam ser afirmadas — e como fazer isso — para ajustar o processo de desenvolvimento econômico à feição da formação histórica de cada povo. Como o esmagamento cultural é um fenômeno contemporâneo, os países desenvolvidos não tiveram de enfrentá-lo e não dispõem hoje de condições para resolvê-lo, pois suas instituições pertinentes são estratificadas, fortes demais para que uma delas — ou uma nova — esteja em situação de elaborar e impor um programa sistemático e integrado. A solução, continua o embaixador, terá que vir dos países em desenvolvimento, dos de formação mais recente, pois nesses tudo está sendo feito, não existem instituições pertinentes ou as que existem não se acham cristalizadas.

Os institutos dos países desenvolvidos

A CONCEPÇÃO VISUAL

Segundo Aloisio Magalhães, o programa teria a seguinte concepção visual:

1) O espaço a estudar — o Brasil — tem contorno determinado, base essencial ao estudo: a metade voltada para o mar condicionou comportamentos fundamentais à compreensão da nossa evolução cultural, já que lá estavam as principais portas de comunicação com o mundo; a outra metade tem contorno determinado principalmente por fatores geofísicos — a floresta amazônica, os Andes, o Pantanal.

2) Pensa-se em sobrepor a esse espaço um sistema reticulado, a partir de duas coordenadas que se cruzam sobre Brasília. Esses módulos, ainda não determinados, serão as unidades de estudo. O sistema procura ser flexível.

3) Uma terceira coordenada projeto o modelo na dimensão “tempo” cujo módulo será também flexível.

4) Assim, tentar-se-á manter sempre uma visão de conjunto no espaço e no tempo; muitos serão os módulos que continuam perfeitamente intatos no seu “tempo zero” (até 21 de abril de 1500). Em outros, será possível observar uma relativa harmonia na superposição, como que em camadas, dos momentos culturais do processo histórico.

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Módulo adensado – cuidam apenas do conhecimento e da preservação da cultura — como o Museu das Artes e Tradições Populares, na França, e o Smithsonian Museum, nos Estados Unidos —, sem considerar objetivamente, como propósito, o avanço avassalador da industrialização. O Clube de Roma, que se afasta dessa linha de atuação, ocupa-se de prospecções muito genéricas sobre o destino do mundo e não tem funcionamento permanente e estável.

“Então”, conclui o embaixador, “se um país como o Brasil, que está no limiar do desenvolvimento econômico acelerado, mudando sua maneira de ser, de comer, de andar, dançar e reagir a determinadas situações — se este país encontrar uma mecânica para identificar sistematicamente o que caracteriza o fato brasileiro, cultural ou outro —, ele estará abrindo a possibilidade de que a Nigéria, por exemplo, faça a mesma coisa. A Nigéria sabe que o seu excelente Museu de Etnografia, com sua coleção fantástica de bronzes, não resolve a questão. A Arábia Saudita, que tem uma riqueza cultural extraordinária e vai transformar-se num centro industrial, estará interessada, pois tem consciência de que a superposição do desenvolvimento industrial arrasa tudo.”

Para Aloisio Magalhães, o Brasil tem condições excepcionais para realizar esse projeto,

“especialmente porque existe Brasília”.

Ele explica:

“O projeto corresponde inteiramente à vocação de Brasília de ser o pólo de integração, o ponto de referência do conjunto, de onde se pode olhar o todo sem estar ligado a nenhum dos núcleos culturais diversificados e de certo modo contrastados que compõe o mosaico da cultura nacional.”

Além disso, acrescenta Murtinho, “Brasília ainda é um campo aberto, onde se pode realizar corretamente, porque as coisas são feitas do começo, sem que se tenha de reformá- las ou corrigi-las. Como partimos do marco zero, marchamos para um modelo extremamente contemporâneo, usando tecnologia muito mais elaborada”. Enquanto cuidam de definir o projeto, sem pressa, tendo todo um ano pela frente, os responsáveis por ele começam a estender uma rede de comunicação para dentro e para fora do país, a fim de recolher sugestões e informações úteis. Assim é que George Henri Rivière, fundador do Museu de Artes e Tradições Populares de Paris, já se comprometeu a vir a Brasília, pondo à disposição do grupo o know-how daquela instituição sobre conservação e documentação, e disse a Aloisio Magalhães que gostaria de ter podido realizar na França o que se  tenta agora fazer no Brasil. A Unesco e o Instituto de Estudos Tropicais, da Holanda, também já foram consultados. Da Unesco virá, oportunamente, o professor espanhol Hipólito Escolar Sobrino, renomado especialista em biblioteconomia e documentação. Aloisio Magalhães e Wladimir Murtinho pensam estabelecer a rede interna através do Departamento de Assuntos Universitários do Ministério da Educação, para fazer logo o levantamento das fontes existentes e integrá-las — “desde o excelente Instituto Goeldi, de Belém, até o que se puder localizar perdido por aí”. Isso não seria botar o carro na frente dos bois, pois enquanto se desdobra a definição do projeto “as ideias irão sendo enriquecidas”, como diz o embaixador, no preparo de exposições patrocinadas pela Secretaria de Educação do Distrito Federal e pelo Ministério da Educação.

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