A Marca e o Logotipo Brasileiros

Wlademir Dias-Pino

Rio 1974

O título deste livro – e a palavra ‘livro’, no caso, já não é bem a que melhor o denota – é, de um lado, absolutamente fiel a um dos seus muitos objetivos: A marca e o logotipo brasileiros.

Qualquer industrial, artesão, criador de coisas, comerciante, banqueiro, financista, barganhador, intermediador, (de bens, benesses, serviços, relações) que se defrontar com a necessidade de ter a sua marca ou o seu logotipo, nele encontrará um repertório de informações tão rico e aliciante que, sem dúvida, sairá, depois de manuseá-lo e apreende-lo, enriquecido de ideias para criar ou fazer criar ou escolher a sua marca ou o seu logotipo. Assim, o objetivo primeiro está aqui cabalmente cumprido.
Mas marca e logotipo têm história, forma, função, estrutura, inseridas na cultura. E o lado visual da cultura, se não é sensorialmente o predominante, é por certo dos mais relevantes, se bem que os sentidos continuem e continuarão a ser campo aberto ao conhecimento humano, como elos situacionais do vivente para consigo mesmo, do vivente para com o vivente, do vivente para com o não-vivente e, por extensão, de ser para com ser.
Percamos uns minutos com relação às duas palavras-chaves deste livro.
A base morfológica correspondente ao português marca ocorre em quase todas as línguas germânicas; e, através de teutônico, deve ter sido cedo introduzida no românico, aparecendo, tanto em forma feminina quanto em masculina, como em ambas (como é o caso do português marca e marco, ademais de marcha, e sem contar seus cognatos), no francês, no provençal, no italiano, no espanhol, com sentidos que se irradiam entre ‘sinal, signo, sinete, limite, moeda (porque ‘marcada’), padrão, módulo, modelo, traço, caráter’ e afins. Em português há documentação escrita, tardia embora, já a partir de 1179 e daí por diante com ocorrências nos diversos sentidos referidos. Mas o ligado mais diretamente à problemática deste livro, vale dizer, a ‘marca comercial’, não deve ser anterior ao século XVI, como se pode inferir da palavra inglesa correspondente, trade mark, cuja acepção se faz clara já por 1571, embora a forma fixa de composto só se documente por 1838.
De outro lado, a palavra logotipo é de formação moderna, calcada sobre elementos gregos (lógos, ‘palavra’, e týpos, impressão, marca) e tem sua origem inequivocamente estabelecida: foi forjada em 1816 , em inglês, pelo conde Stanhope, citado da Typographia, de 1825, no Hansard´s Parliamentary Debates, nos seguintes termos, por tradução: “Estimei oportuno forjar um novo par de caixotins compostos… introduzindo um conjunto novo de letras duplas, que denominei logotipos”. Daí – dada a internacionalidade e motivação óbvia em línguas de cultura – a palavra passou para outras, sempre, de início, como termo de tipografia no sentido de ‘tipo com uma palavra, ou duas ou mais letras, fundidas numa peça única’. Talvez a primeira dicionarização das palavras em português seja a da chamada 10ª edição (1954) do dicionário originalmente de nosso compatrício Antônio de Morais Silva (cuja grande edição é de 1813), em que ocorre sob a forma logotipo – pó requinte filológico postulado pela quantidade breve do y grego original, como nos casos de protótipo, genótipo, fenótipo, biótipo etc. mas em tipografia, na linha consagrada para com monotipo e linotipo, para que não há como contestar o paroxítono de logotipo. O que há é consignar o fato de que, do sentido original, a palavra logotipo tem hoje em dia, pelo menos no Brasil, uma aura semântica que se aproxima da de ‘marca comercial’, ‘marca de fábrica’, ou, mais ainda, de ‘marca, sinal, símbolo, emblema, insígnia empresarial’ e afins.
Estão, assim, perdidos os minutos solicitados para as palavras em causa, que poderiam ser horas ou dias. Fui, quanto pude, breve. E prossigamos.
Ora, se de um lado este livro, como dissemos, é absolutamente fiel a um dos seus objetivos, com ser, como é, catálogo racional e temático de marcas e logotipos brasileiros capaz de ministrar aos usuários um repertório riquíssimo de espécimes dessa natureza, vai ele, de outro lado, muito além disso, pois constitui sem favor uma preciosa iniciação à faculdade e arte de ver.
Houve e há uma tradição que crê os sentidos e os instintos – e entre eles os limites continuam operação de dificílima definição, em todos os ramos das biociências – como manifestações de vida biologicamente transmitidas, cujas potencialidades se atualizam no curso da aventura própria de cada vida. É muito provável que haja aí um lastro de verdade.  Mas é mais provável que haja aí apenas mais um lastro de verdade, mas não a verdade. O homem, como ser sócio-histórico-cultural, faz-se a si mesmo. E faz-se a si mesmo porque, dentre muitos outros fazeres, faz cada vez mais humano o ouvir, o ver, o degustar, o olfatar, o tatear, o termar, o etcetrar – correndo o risco, assim, de também cada vez mais desfazer o humano que já tenha conquistado. Assim, o homem tem fatalmente de aprender tudo, desde o primeiro até o último momento do seu viver, aprender inclusive o morrer. E não há saber que se possa erguer e apreender sem confrontação, debate, dúvida, divergência, polêmica, ensaio, erro, obstinação, prova, contraprova, prática.
Ora, este livro ‘organiza’ o material, que se propôs documentar, segundo vários pontos de vista. De um lado, postula um tipo de ‘leitura’ – quero sobretudo dizer ‘visura’ ou ‘vistura’ – em que haja uma operação contrapontística: se as páginas pares são, em certas áreas, preferencialmente documentos visuais presentes, modernos, as páginas ímpares são preferencialmente documentos pretéritos , modernizados ou atualizados pelo contraponto. As raízes brotam e emergem na floração de hoje. Mas pedem mais estas páginas: pedem que o ‘leitor’ – ou ‘visor’ ou ‘vistor’ ou ‘vedor’ – acompanhe os aprofundamentos que se propõem sucessivamente, desde, por exemplo, uma página com uma quadrícula central apenas, até as seguintes, em que o tema quadricular – como num esquema de transformação do Bauhaus – se amplifica, se transfigura, se enriquece, se despoja, se barroquiza.
Creio dever aqui também ressaltar outra dentre as muitas sabedorias consumadas neste livro. A tecnologia gráfica e tipográfica – se posta em evidência nos seus mais requintados recursos – poderia ter feito dele uma obra de arte gráfica luxuosa, suntuária, até mesmo pidatória: seria ‘belo’, mas seria irreal para o nosso meio, transformando-o em coisa de bibliófilo, o que não é defeito, mas é, até muitos pontos, coisa para os ‘eleitos’ da tribo. A sabedoria a que me refiro constituiu em fazê-lo realmente funcional e belo, mas com uma exemplar economia de meios, com recorre a técnicas gráficas menos onerosas e nem por isso menos eficazes: consciência social.
O livro, assim, diagramado em ativa operação mental – e aqui o visual é, efetivamente, à Leonardo da Vinci, cosa mentale – , se torna um permanente desafio ao usuário, propondo-lhe associações, oposições, conexões, correlações, dissociações, simplificações, atomizações, conglomerações, análises, sínteses, expansões, contrações, dispersões, compactações, com problemas que transcendem o teorético da gestalt, do behavior, do abissal. É uma obra aberta, no melhor sentido didático, o de aprender sempre, de educar-se sempre, dentro ou sobretudo fora dos centros institucionalizados de instrução – as escolas, quaisquer que sejam os seus nomes: creche, maternal, pré-primário, primário, ginasial, colegial, técnica, ateneu, vestibular, academia, superior, faculdade, universidade, colégio e os demais -, como na visão antecipatória de Ivan Illich.
Os textos que acompanham o material visual fervilham de proposições e insinuações, mas não se prendem rigidamente a um sistema de idéias ou de teorias fechado: são eles também, na sua concisão lapidar, convites à mentação, à pensação, à indagação, à pesquisa, à discussão individual (de si para si) ou colegiada (de vários para vários), permitindo hipóteses de trabalho das mais diversas e fecundas. Os campos da comunicação e da expressão, teórica e praticamente, se problematizam assim, compelindo a um pensar e um fazer experimentais de que velhos erros e novas luzes brotarão.
O poderoso escritor que é João Felício dos Santos, com ter seu nome associado à co-autoria deste livro, de ter-se sentido rejuvenescer dentro de um novo universo, já que o seu era o de um veterano campeão de outro, o verbal. E Wlademir Dias-Pino, na sua seriedade de um dos mais perspicazes pesquisadores do visual no Brasil, deve sentir-se feliz com essa realização, que encontrou nos editores e gráficos Antonio da Costa Martins e Aparício Miranda, a benemérita compreensão de que aqui se aperfeiçoou algo muito mais do que um catálogo de marcas e logotipos. Esse algo, este livro, deverá ser um vademécum para quantos estudantes haja no Brasil onde se estudarem, pra valer, os problemas da comunicação e expressão visuais. Oxalá esse meu voto se confirma, para que venhamos a ter a enciclopédia do visual que Wlademir Dias-Pino sonha – e pode – realizar.
Antonio Houaiss – Rio de Janeiro, 10 de julho de 1974