Gilvan Samico, Gravador de Olinda, Faz 70 Anos

Calibán: uma revista de cultura, 1, 1998.

fonte: UT Libraries 2008

  • p. 22

… de pescadores. A minha única escultura representa dois pescadores numa rede. Eu ficava mais num plano idealizado. Não conseguia aferrar-me àqueles princípios. O que eu via aparecer na praia era uma coisa mais para o lado poético do que para os problemas vitais do dia-a-dia: figuras na praia, os pescadores, sem nenhum desejo de mostrar a miséria deles. Isso não acontecia porque eu desejasse desenvolver alguma tese. Não. Era porque de fato eu não me preocupava que tais questões saíssem na pintura.

CA — Então, você já sabia os caminhos a seguir. Tinha feito sua escolha. Sentira os temas, as influências e decidira que não iria simplesmente seguir o que se fazia no Atelier Coletivo. Mas você referiu-se a trabalhos já realizados. Qual o que se afirmava como uma atividade definitiva no seu projeto de vida como artista?

GS — Você sabe muito bem que essas atividades afirmam-se com lentidão. Tem pessoas que são mais rápidas do que outras. O meu caso é o da lentidão. Eu sou aquele sujeito que vai fazendo as coisas muito devagar. O negócio da escultura, por exemplo, no caso do Atelier, a gente convivia com um escultor, o Abelardo da Hora. Ele estava ali, então a gente dizia, bom, vamos experimentar fazer uma escultura. Fiz a minha primeira escultura com o intuito de experimentar uma técnica desconhecida para mim. Só fiz uma. Foi apenas uma tentativa. Lá para as tantas, Abelardo teve a ideia de criar o Clube da Gravura, a exemplo de outros que existiam no Brasil, como era o caso do de Porto Alegre. Cada um tinha a obrigação de realizar uma gravura por mês. Depois, era aquela história de sempre: encontrar um sócio que fosse pagando todo mês. Eu fui um dos que fez uma gravura para esse Clube. Havia uma particularidade curiosa: a matriz da gravura foi feita numa placa de gesso. Isso não foi minha escolha. Aconteceu que, sendo Abelardo da Hora escultor e usando esse material no seu trabalho, resolveu que seria prático e econômico fazer uma gravura numa placa de gesso. Fundia-se a placa em cima de um vidro, quando secava, estava pronta. Era evidente que resultava num material, como matriz para gravar, muito ruim, péssimo. Eu me lembro que um dia se perguntou: que nome vamos dar a essa gravura? Eu mesmo respondi: gravora, quer dizer, gravura pensada por Abelardo da Hora! Foi a única matriz que eu fiz no Clube, porque depois que aconteceu isso, deu-me uma vontade de seguir em casa, mas gravando em madeira. De certa forma, mais tarde, por não dar certo o Clube de Gravura, fiquei trabalhando em casa. É neste momento, para responder sua pergunta, que o gravador começa a existir.

CA — Saindo um pouco da órbita dos materiais e dos instrumentos de trabalho do gravurista e centrando na figura do criador, o artista, sobretudo aquele que, como no seu caso, consegue reunir os dois momentos fundamentais da elaboração como obra de arte — o criador e a criatura.

Aconteceu que Aloisio Magalhães, que conhecia meu trabalho e já havia inclusive me dado um prêmio no Salão de Pernambuco, sabendo que eu decidira ir para São Paulo, apresentou-me por carta a um amigo dele, o gravador Lívio Abramo, que então ensinava numa escola mantida pelo MASP.

  • p. 23

Foi assim que eu acabei encontrando Lívio Abramo na minha vida. Não era minha intenção mas terminou acontecendo. Apresentei-me a Lívio, ganhei dele uma bolsa que durou uns 6 meses. Até então eu não tinha muita preocupação com ideias ou pesquisas. Fazia o que me vinha à cabeça. É verdade que aprendi muita coisa com Lívio Abramo, aquilo que o mestre sempre passa para o aluno, mas sem maiores preocupações.

CA — E como apareceu Goeldi na sua vida?

GS — Na hora em que eu resolvi ir para o Rio, Lívio Abramo me perguntou: “Você gostaria de encontrar-se no Rio com Goeldi? Ele é meu compadre.” Claro, disse que sim. Fui aceitando as sugestões dele, apesar de toda minha inibição. Aí, Lívio me deu um bilhete para que entregasse a Goeldi. Apresentei-me na torrinha, ali na Escola de Belas de Artes, onde ele dava um Curso Livre a vários alunos. Passei a  frequentar as aulas. Só me lembro de umas duas coisas feitas lá. Goeldi era muito parcimonioso com o trabalho dos outros. Limitava-se a dar poucos conselhos, mas o fazia com rigor e seriedade.

CA — Depois da experiência vivida com Goeldi, você voltou para o Recife a fim de resolver assuntos pessoais. Que fato significativo levou você a abordar temas até então ausentes de seu trabalho criativo? Foi uma espécie de nova visão para a sua arte?

GS — Bom, quando retornei ao Recife, em conversa com Ariano Suassuna falei de minha preocupação com o rumo a dar a meu trabalho de gravador. Eu achava que nele faltava uma marca pessoal. Então, Ariano chamou a minha atenção para a arte popular. Na época achei isso uma tarefa difícil. Eu perguntava a mim mesmo: como é que eu vou tirar subsídios da arte popular para aproveitar nas minhas gravuras? Eu não sabia como encontrar um caminho próprio, uma saída pessoal , porque não queria apenas copiar o que já havia estabelecido pelos chamados gravadores populares. Isso se constituiu num grande desafio para mim. Aí, eu comecei a estudar, a pesquisar os temas. Eu não fui à gravura popular, mas à própria literatura de cordel, captar e apreender elementos. É evidente que, com isso, quando passei à prática, minha gravura começou a mudar. Em vez do clima noturno, ela passou a ser diurna. A minha gravura …