1985
Cultura
3.2.65
O Estado de São Paulo
A grande responsável pela ressurreição do painel “Eu vi o mundo, ele começa no Recife”, dona Norma Carreira Peregrini, tem razão em afirmar que ele somente pode ser explicado como uma “explosão do inconsciente do pintor”. Idealizado como uma representação onírica do mundo de Cícero Dias anterior à sua própria criação, o painel parece ser uma fabulação dos relatos, adaptados à …
Os espanhóis têm uma maneira de definir aqueles artistas plásticos que se antecipam à sua época: são os “adelantados”. Sob esse signo, consideram “adelantados” G. Solana, em sua morbidez estética; Sorolla — talvez o mais conhecido no Brasil — , que incorporou a seus quadros grande luminosidade e criou certa atmosfera muito importante para aqueles que o seguiram; Zuloaga, de uma virilidade agressiva quase, visceralmente apegado à sua Castilha como um rei; Vasquez Diaz, o imortalizador dos fastos de Colombo no Convento de La Rábida, num muralismo que se remonta talvez a Puvis de Chavannes; Maria Blanchard, a doce-amarga pintora respeitada desde os primeiros arroubos barroquistas até às simplificações cubistas que a eternizaram; e Regoyos, o despreocupado do Tempo e da Glória, antecipando à pintura a luz não elaborada e instintiva. E outros, e dezenas de outros que vão formar como que num telão de fundo o cenário ideal para o advento do gênio de Picasso. No Brasil do século XX as cousas se processaram de maneira muito diferente. A ruptura foi brusca e alarmante. O caso de Cícero Dias (que é o que nos interessa aqui) deve ser explicitamente assinalado porque a “Semana de Arte Moderna” de São Paulo vai surpreendê-lo com 14 anos de idade! Nascido em 1908, ingressa na “Escola de Belas Artes”, do Rio, onde permanece entre 1925/28. Ao desligar-se da Escola, entrega-se definitivamente ao ofício de pintor e incorpora-se às correntes modernistas de então. Quando expõe em 1931, no Salão de Arte Moderna, o painel “Eu vi o mundo, ele começa no Recife”, de 15 metros de comprimento por 2,5 de largura, ele está na quadra dos 20 anos. A pintura registra poucos casos de precocidade. Rembrandt, por exemplo, instalou-se como pintor independente aos 18 anos mas, de uma maneira geral, as obras-primas dos artistas plásticos surgem na maturidade e, até mesmo, na velhice. Leva-nos a Fra Angélico e a Giotto mas, ao mesmo tempo que se retarda, avança no espaço numa antecipação lírica de um Chagall, que ele irá conhecer muitos anos depois. O mais surpreendente ainda é a unidade da concepção do painel, apesar dos enormes espaços pintados. Inovando tintas naturais, utilizando cola de peixe e se servindo como suporte de papel pardo de embalagem, adquirido metro a metro no bairro de São Cristóvão, o conjunto dá a impressão de haver saído de um jato e concebido em um único esforço criador. (Sabe-se que Proust, ao escrever a primeira página do A la Recherche du Temps Perdu, já sabia a frase com que ia terminar os quatro volumes finais. Igual fenômeno pode ser encontrado no painel, que começa com flores e termina com trempes de cozinha, com panelas, e com uma enorme …
Tapetes voadores, quintais com frangos gigantescos, potes de barros, gente acenando a um trem de ferro que não parte jamais; cavalos, tropeiros, mulheres maternais e “putanas”, mulheres coroadas com flores nos cabelos, montadas em garupas de cavaleiros que em breve veremos de cabeça para baixo, com calças listadas e chapéus-de-coco; instrumentos cortantes — foices, punhais, facas — de proporções descomunais; flores esparsas, frutas de difícil classificação, aviões de hélices primárias, lobas que não amamentam lobinhos, colunatas gregas em ruínas, castelos semi-medievais, pés calçados com enormes sapatos que caminham sem direção, sem corpo e sem cabeça.
Bois, casas arrastadas por pessoas, com cordas frágeis demais; misteriosos números cabalísticos em frontais de vidros, enfim, todo um mundo que começa em buquês de flores silvestres e termina numa trempe de ferro familiar. Que pensaria Dali se tivesse tido a oportunidade de ver essa explosão lírica, ao mesmo tempo pastoril e urbana, arcaica e modernista? A historicidade do processo de recuperação do “Eu vi o mundo, ele começa no Recife” pode ser assim resumida. Redescoberto por Aloisio Magalhães num depósito da Fábrica Bangu, ele foi entregue pelo diretor do museu, professor Alcídio Mafra, à dona Norma Carreira Peregrini, para restauração, depois que o próprio professor Edson Motta diagnosticara-o como irrecuperável, perdido, pela extrema deterioração em que se achava. Em primeiro lugar, ela realizou um levantamento técnico das condições lastimáveis do painel, após 20 anos enrolado e encaixotado em lugar úmido e impróprio. Verificou-se então que o suporte do painel, isto é, o papel pardo de tipo Kraft, importado, estava dividido em oito segmentos (unidos por uma emenda central), que variavam entre l,88m e 4,94m de comprimento e largura, respectivamente. O suporte, de grande fragilidade, estava cheio de rasgões, de áreas destruídas, com dobras, fissuras, zonas de desenho e pintura completamente perdidas. Ao todo, talvez devido à sua ressurreição, o papel-suporte apresentava uns remendos de pano de algodão e de papel de jornal. Na análise de laboratório foi constatada a utilização da cola de peixe e esse elemento, após certo tratamento químico, serviu de base-padrão para uma recuperação posterior, unida à comum. O que se seguiu foi o desmembramento dos segmentos; a remoção a bisturi das camadas de cola; a vaporização de água mineralizada para hidratação …
Até a zona de assinatura — 1929, estava perdida. A montagem final da obra, de difícil manuseio devido às enormes dimensões, foi realizada na própria sala Museu, onde posteriormente foi instalada. Os segmentos pictóricos restaurados e retocados a guache pelo próprio artista, o suporte foi reforçado em madeira de cedro, imunizado contra a ação do tempo, isolado da parede por camada de cortiça e então o painel de Cícero Dias retornou à parede do “Museu Nacional de Belas Artes”, para admiração das novas gerações.