Aloisio Magalhães, artista: o seu polimorfismo

Braga, Isis Fernandes

Anais do XXIII Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, UERJ, Inst. de Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pós-Graduação da Escola de Belas Artes, 2004.

M Library 2007, UT Libraries 2008.

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A proposta desta comunicação é abordar a produção artística de Aloisio Magalhães (1927-1982), e o que o levou a abandoná-la, para retomá-la somente dez anos mais tarde. Entendo ser a análise do pintor Aloisio fundamental para a compreensão do designer Aloisio Magalhães, porque sua trajetória envolveu tantos e tão diversos elementos, transpostos passo a passo, sempre pontuados por um interesse crescente, formando um todo coerente que se entrelaça, as suas atividades sempre se interligando, uma levando à próxima, em uma evolução constante.

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Tratava-se de um grupo de jovens que sacudiu a vida cultural de Recite. Segundo José Laurenio de Melo, sua primeira apresentaçâo deu-se na biblioteca da Faculdade de Direito. Eram seus componentes predominantemente os estudantes de direito: Hermilo Borba Fº, Gastão de Holanda, Ariano Suassuna, Gallia Marinho Yagana (eleito presidente executivo), já que o presidente de honra era Gilberto Freyre), Salustiano Gomes Lins (calouro de medicina e responsável pela iluminaçâo). Aloisio logo se interessou pelas finalidades do ТЕР e passou a colaborar expressivamente como cenógrafo e criador da indumentária, além de encarregado do teatro de bonecos. Ele fazia um pouco de tudo, desde a marcenaria. os bonecos, além de participar ativamente dos ensaios na casa de Hermilo e Débora. É nesta ocasião que Aloisio começa a participar de exposições de pintura e desenho, individuais e coletivas com Reynaldo Fonseca e Francisco Brennand. Eram marinhas e telhados à carvão dos bairros de Santo Antonio e S. José vistos da janela de seu trabalho, no Departamento de Documentação e Cultura, em Recife. Ao mesmo tempo que exercia suas atividades na Faculdade de Direito ele freqüentava como ouvinte, as aulas de pintura na Escola de Belas Artes do Recite, com o pintor Alvaro Amorim. Em 1949 Aloisio participa do IV Salão de Arte Moderna promovido pela Sociedade de Arte Moderna de Recife/SAMR com cinco pinturas intituladas Sitio do Carrapicho, Paisagem com carneiros, Paisagem com Barcos, Natureza Morta e Menina. Não conseguí reproduções destas obras.

Entre 1951 e 1953 Aloisio Magalhães permanece na Europa como tinha bolsa concedida pelo governo Francês através da Embaixada de França, então no Rio de Janeiro; de lá ele volta com ideias definidas sobre o design. Em Paris, Aloisio convive com Gastão de …

… paisagens ou mesmo as experimentações, como quando ele usou um barbante embebido em tinta como matriz para as ilustraçôes de Aniki Bóbó (O Gráfico Amador, 1958).

Nesta viagem, ele tomou conhecimento com a pintura de Paul Klee, sob cujo fascínio sucumbiu, influenciando enormemente o seu trabalho.

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Klee, pintor suíço-alemão. Também tropicalizava, procurava as florestas, florestas primitivas, inspirava-se nos desenhos rupestres, na pintura dos loucos e das crianças.

Aloisio considerava, ele mesmo, nesta mesma gama de influência a pinturas de Masaccio e de Piero de la Francesca, cujos trabalhos ele admirou em uma viagem à Itália nesta mesma época, como ele mesmo depõe em entrevista concedida a José Cláudio, pintor pernambucano, seu amigo. Durante esta primeira viagem à Europa, aconteceu no íntimo do Aloisio a grande gestação das imagens que passariam pelo crivo de seus antecedentes sociais. Ele estava enriquecendo o seu arquivo mental, que depois seria utilizado a serviço de sua criatividade. Creio que as seguintes reflexões se aplicam ao momento vivido por Aloisio em Paris: O homem só vê aquilo a que está acostumado. O homem civilizado intelectual está treinado para só perceber a mediação de suas próprias ideias. Ele não sabe ver com seus olhos simplesmente, mas suas crenças, seus hábitos e seus preconceitos interferem em todo tipo de interpretação visual.

E pela reflexão que, creio, o fruidor poderá chegar a um caminho mais seguro para a formação do seu olhar. Alguns amigos relataram nunca terem visto Aloisio Magalhães pintar em Paris. Segundo o pintor olindense José Cláudio, durante sua estada em Paris Aloisio parece ter sido, no que se refere à pintura, “sempre muito pouco ortodoxo” o que o “‘interessou mais foi a vivência, ver cinemateca, ler”, e ainda “que os amigos em Paris eram ligados ao teatro, matemática, não era um círculo estrito de pintores as pessoas a quem se ligou”. Na realidade Aloisio Magalhães estava se embebendo de arte, visitando museus, tomando conhecimento da pintura de artistas dos séculos anteriores e de seus contemporâneos. Mas todo o background de filho de Pernambuco estava lá, permeado com a aspirações do jovem artista, preparando a eclosão do artista, do designer e do produtor cultural.

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… galerias, não ia a cinemas, eu gostava imensamente de cinema, eu gostava de teatro, mas não ia a nada disso, então diversão tipo cabaré nem pensar, inclusive o dinheiro era escasso e eu vivia com minha mulher, como um estudante pobre, apesar de ter um atelier; ninguém morria de fome, o dinheiro que não chegava, dava para viver, mas viver como estudante. Mas Aloisio supria essa minha deficiência de relacionamento porque Aloisio se tornou logo amigo de uma quantidade enorme de brasileiros, estudantes em Paris, Geraldo de Barros, Ada Abramo (ela e o marido Lívio Abramo se conheceram em Paris), Carlos Lira, que era filho de um antigo dono do Diário de Pernambuco, teve uma educação americana e estava em Paris estudando matemática, era um verdadeiro gênio. Alguma coisa Aloisio Magalhães produziu de palpável em sua estada no exterior – como atestam algumas páginas de um álbum de monotipias: OLINDA, o qual traz uma dedicatória à

“Monsieur Gabriel Marcel, respectueusement, Aloisio/Paris”,

o que também mostra sua nostalgia da terra natal.

O peso da civilização é muito grande e acontece, mesmo que não se confesse, uma modificação no íntimo de quem vive esta experiência, força-se a ter uma relação conflitante com sua pátria de origem. Perde-se um pouco das raízes. Ao mesmo tempo a distância permite um olhar mais terno, saudoso mais complacente. Voltar de uma experiência como essa, adiando que se vai mudar as coisas, o mundo. Com Aloisio também ocorreu este estado de espírito. Ele voltou querendo agir, fazer as coisas novas.

A primeira coisa que fez em seu retomo ao Brasil, foi começar a atuar, a partir de 1954, com Gastão de Holanda, Laurênio Mello, Ariano Suassuna e mais tarde outros, em O Gráfico Amador, experiência em editoração onde fazia gravuras, xilogravuras e design de livros. Nesta ocasião ele recomeçou a pintar, em seu atelier no sótão da casa onde funcionava O Gráfico Amador, com rara felicidade, maestria e rapidez. Ainda na entrevista acima citada. Brennand faz uma comparação entre a pintura de Aloisio e de Klee:

Quando o antropólogo descreve os hábitos e a cultura de um povo. ele se baseia, em grande parte, nos achados ou pesquisas, seja de objetos utilitários, seja de manifestações artísticas.

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Quando o historiador de arte fala sobre um determinado movimento artístico ele tem que enfatizar todo o entorno cultural e social do lugar onde o movimento em pauta ocorreu, e o que o gerou. Para o pintor Aloisio houve um período de gestação e desenvolvimento. Esta fase de gestação compreende o interiorizar imagens e influências. Ele passou por elas quando tomou conhecimento da obra dos artistas acima citados, que exerceram influência na sua formação. De todos eles, entretanto, a obra de Paul Klee exerceu papel preponderante, o que se pode ver em suas obras. Em arte, muitas vezes a influência de outro pintor é tida como funesta, embora a cópia de bons artistas faça parte do aprendizado técnico. Não era este o pensamento de Aloisio Magalhães: já exercendo as funções de Secretário de Cultura, ele proferiu uma saudação ao Presidente João Figueiredo, durante a visita deste à sede do IPHAN em Brasília, em 12 de novembro de 1979, da  qual destaco um pequeno trecho:

A aceleração do nosso processo de desenvolvimento é inevitável, é inevitável a cópia e absorção de modelos – e inevitável porque o mundo não pode parar e uma Nação não pode isolar-se das outras. Mas é, ao meu ver imprescindível que ao lado deste desenvolvimento exista sempre, constantemente, o aferimento dessas modificações, dessas alterações rápidas, o aferimento disso à luz dos valores próprios da nação, dos segmentos que são criados ao longo do processo histórico e que devem servir de parâmetro, inoculando no processo vindo de fora – nós inevitavelmente temos que absorver – inoculando uma vacina própria, a vacina da adequação dessas alterações à verdade e autenticidade do perfil cultural da nação.

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Em uma época na qual nem se ouvia falar em globalismo/globalização, tão em foco atualmente. Aloisio Magalhães, lúcido, já antevia a necessidade das trocas de bens simbólicos e materiais, assim como a adaptação dos mesmos ao nacionalismo brasileiro. Neste processo o artista, segundo ele, tem um papel importante. Para Aloisio, o artista não copia, ele modifica, soma, subtrai. Não o faz indistintamente, como ele diz no mesmo discurso do IPHAN,

porque uma cultura é feita de elementos compostos do passado que são vistos pelos homens transitórios do presente e que desenham o caminhar projetivo

Rafael copiou Perugino, Tiziano copiou Giorgione, Miguel Angelo e Leonardo copiaram os gregos. Aloisio Magalhães se inspirou em Klee e também em Escher, cujo trabalho conheceu quando foi à Holanda acompanhar a impressão das cédulas de cruzeiro. Ele estava muito tenso a respeito e sua viúva Solange relatou-me que ele ligou para ela dizendo todo entusiasmado

deu certo!!!.

Nesta ocasião ele fez a associação, visualizou, nas repetições das notas, o que seriam os Cartemas. Esta influência está visível nos cajás e cactus pintados em aquarela. Aloisio abandonou a pintura para se dedicar a seu escritório de design. Sua viúva, Solange, me disse que ele desejava alcançar um público maior, que só o faria através do design. Em 1963 participou da criação da ESDI, Escola Superior de Desenho Industrial. Depois foi, gradualmente, deixando o escritório pela atuação na Secretaria de Cultura. Em 1979 foi presidente da Fundação Nacional próMemória. Em 1981 Secretário de Cultura do MEC. Mas ainda voltou à gravura e à pintura, mas não no estado em que a havia abandonado pelo design. Joaquim Redig de Campos escreve, em 20 de novembro de 82, um artigo, que havia sido encomenda do próprio designer, para sua exposição individual. Tal artigo intitula-se “Aloisio Magalhães/litografias/desenhos/ESDI/desenho industrial” e do qual extraio algumas partes: Escrever este texto tem para mim um caráter muito significativo. Aloisio me sugeriu escrevê-lo quando D. Carmem Portinho, Diretora da ESDI, Escola Superior de Desenho Industrial lhe propôs, em março ou abril deste ano, expor suas recentes litografias de Olinda nesta Escola. A proposta imediatamente nos colocou no ar algumas interrogações: Litografias?

Tratava-se no fundo de uma questão existencial , cuja resposta nós encontramos exatamente no elo de ligação entre essas sequências acima, ou seja na pessoa de Aloisio Magalhães. No que se refere ao Desenho Industrial, essa questão muito em voga nos anos sessenta (na implantação da ESDI), e hoje menos circulante, permanece ainda fundamental, e permanecerá sempre, na medida em que é uma ponte entre dois polos da personalidade humana, a intuição e a realidade, o prazer e a paciência, o lazer e o saber, a utopia e a realidade. Polaridades em que Aloisio atuava com plenitude.

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As manifestações de Aloisio Magalhães, cada uma característica de um período de sua vida. com seus aspectos próprios são manifestações que vão evoluindo em direção ao subsequente movimento, as polaridades se completando, cada caminho direcionando outro, os caminhos levando a um final que, infelizmente chegou quando Aloisio estava no auge de sua carreira e com tantos planos para atividades futuras.

Em 1974 ele afirmou:

Por algum tempo achei que a pintura estava morta. Hoje não posso dizer a mesma coisa. O desenho industrial me obrigou a ser mais pragmático, a ter um contato mais direto com o meu meio social, a aceitar muitos limites. Hoje, quando faço os cartemas, eu ainda estou aceitando um limite: o do cartão postal. Mas assim como não acredito que a pintura esteja morta, não coloco abaixo de nada do que faço as minhas atividades como desenhista industrial. Acabei descobrindo que a cultura não é eliminatória, mas somatória.

A arte de Aloisio Magalhães, é uma arte plural, que não pode ser analizada apenas por uma visão única, mas tem que ser tomada em seu todo, uma parte completando a outra. Ele não teria sido o que foi sem seus antecedentes familiares e sociais.

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Aloisio Magalhães foi artista, foi designer, foi político, foi produtor cultural. Sentia-se à vontade em palácio e numa república de estudantes. Nunca abandonou suas raízes nordestinas, sempre voltando a sua terra natal, mantendo, mesmo, residência em Olinda.

O que dizer de sua pintura? Ela já foi analisada por críticos do porte de um Antônio Bento, Mário Pedrosa, foi elogiada por Antônio Houaiss, Frederico de Morais e tantos outros. Reconhece-se a influência de Masaccio, Klee, e de Escher? Claro que sim, mas todas elas filtradas pelo artista Aloisio, pelas suas vivências, modificadas pelo tropicalismo brasileiro, adaptadas as condições deste país luminoso. As pesquisas de texturas podem ser vistas nas grandes telas dos canaviais, a visão distorcida, quase em “olho de peixe”, os verdes da cana de açúcar dos engenhos, a ousadia de quem estava, ainda crescendo em arte quando a morte o colheu.

Arquivo Clarice Magalhães