Apropriações / Coleções

Chiarelli, Tadeu, 1956.

Anjos, Moacir dos, 1963.

fonte: UT Libraries 2008

Santander Cultural, Porto Alegre 30/6 a 29/9/2002

ALOISIO MAGALHÃES

 by Moacir dos Anjos

COLEÇÕES DE SENTIDOS

Collections of meanings

Aloisio Magalhães foi um criador múltiplo.

In the 1970s, the artist and designer Aloisio Magalhães explored the democratic character of photomontage. This exploration took place through a special type of photomontage that he conceived and named cartemas.

Pintor, pioneiro do design gráfico no Brasil, administrador cultural, incansável defensor do patrimônio histórico e artistico. Por não distinguir fronteiras rígidas entre tantas e várias atividades, fez de cada uma delas a extensão das outras, dando curso a um processo de hibridismo e contaminação entre áreas criativas comumente separadas. Foi sua experiência como designer do então novo padrão monetário brasileiro (baseado na duplicação refletida de uma imagem) que o levou, em 1970, a conceber os cartemas. A visualização do efeito obtido pela impressão de muitas notas iguais numa mesma folha o animou a apropriar-se de imagens fotográficas disponíveis como cartões-postais e a agrupar, de modo ordenado, vários cartões idênticos sobre um suporte de papel rígido. Por meio das combinações possíveis entre essas fotografias, criou obras em que explorava ritmos, composições gráficas e novos significados para imagens já conhecidas. Empenhado em tornar os cartemas uma proposição estética acessível a qualquer pessoa interessada – concretizando, dessa maneira, seu desejo de fazer da arte uma experiéncia coletiva -, Aloisio Magalhães divulgou, em catálogo de exposição, os procedimentos técnicos necessários a sua criação. Aproximava-se, de modo original, de propostas correntes na arte brasileira ao longo da década de 70, as quais buscavam a participação do público na criação de múltiplos (como Nelson Leirner), na ativação do sentido das obras (Lygia Clark) ou mesmo em sua inserção em rotas alternativas de circulação artística (a arte postal, por exemplo). A escolha das imagens utilizadas nos cartemas se ancora, contudo, na subjetividade do olhar de quem os realiza, o qual se deixa atrair por seu valor iconográfico e/ou por relações formais presentes nas fotografias. Funcionando como “célula generatriz” dos cartemas, cada uma das imagens escolhidas já embute, em potência, as possibilidades expressivas do trabalho concluído. Não somente por reiteração cumulativa dos sentidos que toda imagem carrega, mas também pela capacidade de, em contato estreito com outros iguais, os cartões usados criarem estruturas gráficas e cromáticas sugeridas em cada um deles individualmente. Há sempre presente, entretanto, um elemento de surpresa nessas construções: assim como a repetição continuada e próxima de uma imagem pode subverter ou alterar os significados que a unidade (célula) exibia de modo inequívoco, as linhas e cores que atravessam as superfícies dos cartemas por vezes diluem ou subsumem os elementos formais que denotavam as imagens apropriadas pelo artista. 0 mero aproximar-se ou afastar-se das obras, ademais, pode pôr em destaque um aspecto descritivo da imagem impressa ou reduzi-lo a mancha ou traço de uma composição deslocada, por um movimento do corpo, para a fronteira da abstração. É nessa tensão entre o que cada cartão-postal guarda e o reverso que seu avizinhamento com outros cartões idênticos abriga que reside a eficácia e o interesse do cartema como sistema visual construído. Na escolha das imagens que servem de células aos cartemas, se faz evidente uma aproximação entre processo artístico e colecionismo, prática considerada por Walter Benjamin um modo de renovar o mundo, de inaugurá-lo novamente a cada aquisição feita e incorporada a um acervo particular de sentidos. No desejo de colecionar, diz o filósofo alemão em texto sobre bibliofilia, há ainda um acercamento do universo infantil, onde a recriação da existência é realizada por meio de seguidas apropriações: paredes riscadas, superfícies cobertas por figuras, coisas nomeadas a gosto, o ajuntamento de objetos os mais diversos e estranhos. Aproximando o que parece aos outros distante, o colecionador adulto e a criança que descobre seu entorno criam, e a todo momento expandem, inventários simbólicos e físicos que afirmam o lugar singular que ocupam no mundo.

A série de cartemas aqui apresentada foi feita a partir da apropriação de cartões-postais em preto-e-branco da coleção Chefs-d’Oeuvre de la Photografie, publicada pela galeria Agathe Gaillard, de Paris. São reproduções feitas em offset, em tiragem aberta e em formato padronizado; contrastam vivamente com a forma de veiculação original dessas imagens, feita através de cópias impressas em papel fotográfico – com tiragem limitada e nos formatos originais definidos pelos artistas – ou ainda inseridas em ensaios fotográficos publicados em livro. A relação entre a imagem construída pelo fotógrafo e sua reprodução em cartões-postais atualiza as reflexões que, em um de seus mais influentes ensaios, Walter Benjamin fez sobre a crescente incapacidade da obra de arte evocar, a quem a contempla, significados capazes de atestar seu enraizamento em uma determinada tradição de cultura.

Ao imporem-se como mediadoras entre a obra e o espectador – e também por ampliarem as oportunidades desse confronto -, as reproduções massificadas (como os cartões-postais) velam aquela condição e transformam, de modo definitivo, a forma como o objeto de criação é percebido. Imagens que antes encapsulavam, de maneira exemplar, o olhar de um artista imerso em um certo tempo e lugar tornam-se efêmeras, disponíveis, livres do contexto em que foram criadas; perdem o poder de preservar, em si mesmas, a singularidade de sua gênese. Por meio desse processo, a imagem da obra de arte é destituída do “valor de culto” que lhe era atribuído e assume, de forma gradual e irreversível, um “valor de exibição” emancipado da situação específica em que foi concebida. Ao utilizar cartões-postais de obras de fotógrafos pertencentes ao cânone artistico para construir a presente série de cartemas (objetos de arte singulares e valorizados como tais), Aloisio Magalhães não somente reitera o “valor de exibição” que essas imagens possuem – por meio de seu acúmulo sobre um suporte único – mas, paradoxalmente, as reinsere no circuito dos artefatos que possuem “valor de culto”.

Antonio Houaiss rememora o batismo desses trabalhos da seguinte forma: Pouco depois de tornar de viagem da Europa, (Aloisio Magalhães) dava-me a ver novas peças e, depois, novas outras: tres séries de usos de cartões-postais – comerciatíssimos e turisticíssimos – que se transformavam em matéria-prima dos seus – como lhes dar nome?

1. Nesse contexto, também poderia ser inserida outra “modalidade” surgida mais ou menos no mesmo período, o “citacionismo”, da qual iriam derivar vertentes como as transvanguardas italianas e internacionais, o neo-expressionismo, a má pintura etc. Como nestas considerações essa segunda modalidade não será discutida, optei por simplesmente não trazé-la pra o corpo principal do texto.

2. Essa “opacidade” do signo poderia ser relacionada ao caráter alegórico, ruinoso, que Walter Benjamin percebia na fotografia. Característica essa – a alegoria – completamente destituída de valor no âmbito da modernidade. Dado importante a observar: embora o surrealismo tenha sido marginalizado durante o modernismo brasileiro da primeira metade do século, ele se tornou uma das bases de um segmento muito significativo da produção local do pós-guerra, como, inclusive, poderá ser notado em grande parte das obras apresentadas nesta exposição.

3. Sobre as diferenças entre a colagem cubista e as fotomontagens dadaístas.

4. Concebido por Marcel Duchamp, é um objeto já pronto, existente no cotidiano, apropriado pelo artista e posteriormente deslocado para os espaços da arte.

5. Salvo engano, o que já se produziu sobre o assunto esteve sempre condidonado à produção de um ou outro artista.

Suas bases estão pautadas na estrutura conceitual do surrealismo: o conceito de transformação do sentido da imagem ou do objeto, após sua apropriação e seu deslocamento de contexto. Para a produção artística contemporânea brasileira uma das máximas da estética surrealista, baseada no deslocamento e no estranhamento – e que define a beleza como o encontro de um guarda-chuva e uma máquina de costura sobre uma mesa de operação -, parece ser entendida, inclusive, como o cânone de uma nova ortodoxia.

10. Apesar das diferenças, os cartemas possuem afinidades conceituais com as fotomontagens construtivistas, sobretudo no que diz respeito a seu objetivo radicalmente democrático.

11. Dentre os artistas brasileiros que ao lado de Aloisio Magalhães e Farnese de Andrade, usaram o cartão-postal, poderiam ser citadas Anna Bella Geiger e Regina Silveira. A partir desse termo, remeto o leitor ao texto “Farnese de Andrade no …